quinta-feira, 5 de março de 2015

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Investigando um paciente com alteração cognitiva

Como muita gente gostou, vou tentar repetir o padrão do post anterior sobre Dor torácica. Mas dessa vez com um tema que, particularmente, eu gosto bastante! Diagnóstico diferencial entre demência e delirium, além de expor algumas condutas frente os diferentes casos clínicos. Boa leitura!

è CASO 1

Sr. GCM, 70 anos, sem comorbidades, há 5 dias fez lobectomia de lobo superior direito devido a um carcinoma de pulmão. Hoje, na sua primeira visita pela manhã, Sr. GCM afirmou estar em um campo militar e que gostaria de retornar para casa.


Pelo caso, nós podemos perceber que o Sr. GCM apresentou uma mudança em seu estado mental e portanto, há a necessidade de determinarmos se isso é decorrente de uma síndrome demencial ou um quadro de delirium. Rapidamente, “a única relação entre esses temas é a mudança do estado mental, e pronto!” Enquanto o delirium é um quadro agudo, reversível e que muitas vezes não tem associação com doença neurológica, a demência apresenta-se de forma crônica e raramente é reversível.
Demência, é caracterizada no paciente se o mesmo apresentar memória debilitada associado com pelo menos 1 destes achados: (1) afasia; (2) apraxia; (3) agnosia; (4) debilidade nas funções executivas. Os sintomas devem ser suficientemente capazes de dificultar o cotidiano do paciente!
O delirium não é caracterizado de forma tão objetiva quanto a demência, mas ainda assim existem pontos que devem ser avaliados. Inicialmente devemos saber que sua caracterização no paciente, geralmente, é por um distúrbio na consciência com habilidade reduzida em se concentrar, sustentar e deslocar. Quadro evolui em poucos dias ou horas, e geralmente o paciente apresenta uma condição médica que favoreça o delirium. Ficou meio vago essa última frase, né? Mas é isso mesmo, caro sedento por conhecimento! A quantidade de doenças e condições que causam um quadro mental agudo, é enorme! Mas não se desespere... vamos voltar para o caso.

Sr. GCM no ato da cirurgia apresentou algumas complicações, apesar de no final tudo ter ocorrido bem. Houve excessiva perda sanguínea e hipotensão, mas rapidamente foi revertido o quadro. No pós operatório não houveram problemas, mas sua mulher afirmou por dois dias que seu marido estava “meio confuso”. Hoje, no 5° dia pós operatório, você percebeu que realmente o Sr. GCM apresentava esse quadro mental.  

É um quadro de desorientação e desatenção que evoluiu de forma aguda, ou seja, fala a favor de Delirium. Com isso temos um “muito provável” diagnóstico, mas devemos lembrar que ele é dependente de uma causa e por isso, quando for feito um diagnóstico de Delirium a segunda coisa que deve ser feita é buscar sua “etiologia”.

·         Delirium
Classicamente é visto em um paciente idoso com quadro de desatenção e desorientação associado com alguma doença severa e incapacitante. Se identificarmos um paciente com delirium, é obrigatório determinarmos uma causa, pois sempre haverá!
Lembra quando eu disse para não se desesperar? Então, existem algumas condições que são mais prováveis de causarem delirium e ainda um tipo de paciente mais suscetível! Portanto, tenham em mente que um paciente neste molde e alteração do estado mental até que prove o contrário, é delirium. E como é esse Molde?!

Maiores de 65 anos, institucionalizados e com uma doença severa e incapacitante, geralmente uma infecção (pode ser em qualquer sítio). Mas pode ser por intercorrências, como hipotermia ou hipertermia, distúrbio hidroeletrolítico, abstinência ao álcool e constipação (uma simples constipação?! Siiim!).

Depois de suspeitar de algum paciente, devemos aplicar o Confusion Assessment Method (CAM), fundamental para determinar o diagnóstico de Delirium. Para confirmar o diagnóstico ele deve apresentar os critérios A e B, além do C ou do D. Os seja, é obrigatório que eles tenham o A e B!!
A)     Alteração aguda do estado mental
B)      Desatenção
C)      Pensamento desorganizados
D)     Alteração no nível de consciência  
Depois de confirmar o diagnóstico, nós devemos buscar a causa base. E pra isso devemos refazer a revisão dos sistemas, rever medicamentos (efeitos adversos ou intoxicações ou abstinência), hemograma, função hepática e renal, gasometria arterial, EAS e outros testes dependendo do paciente. Se todos os exames derem negativo, é preciso ficar atendo se a causa é de fato sistêmica ou específica do sistema nervoso central!
O prognóstico da doença de base em pacientes com delirium é pior, por isso, melhor que tratar é prevenir! Então é fundamental ficar atento para os pacientes de risco. E quais são esses fatores de risco? Ora, é só lembrar do nosso Molde!!
Os métodos preventivos são: (1) estimular, avidamente, a cognição do paciente; (2) melhorar o sono do paciente; (3) mobilização precoce e constante do paciente; (4) evitar desidratação. Já o tratamento é avaliar todas essas causas já citadas e em alguns casos pode ser usado um neuroléptico em baixa dose, mas por um curto período.

Foi feito o CAM mostrando que o paciente apresenta delirium e por isso realizada revisão de sistemas, testes laboratoriais e revisão da prescrição farmacológica. Não houve alteração no exame físico e nos testes laboratoriais. Foi prescrito para Sr. GCM Lorazepam 0,5 mg/24h, mas estava recebendo 0,5 mg /8h. Realizaram uma neuro TC e não identificaram nenhuma alteração.

Foi feito essa investigação e encontrado uma alteração na prescrição portanto, vamos retirar o Lorazepam e ver o que acontece! A pesquisa pela TC, de alteração neurológica, provavelmente foi feita pois o paciente tinha uma história de hemorragia na sala cirúrgica.
Foi retirado o Lorazepam. Após 3 dias, Sr. GCM apresentou uma melhora do seu estado mental e no 14º dia do pós operatório recebeu alta.

Como foi visto, apenas a retirada do fármaco foi suficiente para reverter o quadro do paciente. Mesmo que você pense: “foi iatrogênica!”. Nós devemos ter em mente que delirium é uma causa multifatorial e que foi a soma de seus fatores de risco que ocasionou o caso descrito.
Antes de irmos para o próximo caso, existe uma outra causa muito frequente de delirium que é a abstinência ao álcool e portanto, fundamental ser questionada durante uma avaliação de paciente suspeito

·         Abstinência alcoólica
É classicamente apresentado como uma síndrome alucinógena, sem perda do sensório e sintomas adrenérgicos exuberantes. A tríade adrenérgica é: irritabilidade, taquicardia e hipertensão. Existe uma forma de abstinência mais severa, chamada de Delirium tremens (desculpem, mas não achei a tradução...) onde o paciente apresenta além da tríade adrenérgica, alteração aguda do estado mental sendo então, essa a forma que devemos fazer diagnóstico diferencial com Delirium simples.
O álcool causa também duas formas de encefalopatias, a de Wernicke e a de Korsakoff... alguém lembra a diferença entre elas?!
O tratamento do Delirium tremens é de suporte (todos os cuidados para um paciente com delirium) e em alguns casos, doses pequenas de benzodiazepínicos. Os BETA bloqueadores são bons para diminuir os sintomas adrenérgicos, mas devemos tomar cuidado para não mascarar a gravidade da abstinência do paciente.

è CASO 2

Sr. MSR de 75 anos veio ao seu consultório acompanhado de sua esposa. Sua queixa principal é “falha na memória”. Segundo o relato de sua mulher, apesar de trabalhar a mais de 25 anos no mesmo estabelecimento, ele havia se perdido no caminho do trabalho para sua casa na semana passada. Nega qualquer doença ou comorbidade.

Pelo relato inicial conseguimos determinar que o Sr. MSR apresenta um declínio cognitivo, que o impossibilitou de realizar uma tarefa comum do dia a dia. Pela idade, o padrão de consulta com acompanhante e por ser previamente hígido, inicialmente podemos sugerir a síndrome demencial como primeira opção diagnóstica. Devemos pensar também em depressão e delirium.

Durante a anamnese a mulher teve que responder algumas perguntas sobre eventos recentes, pois o paciente não lembrava. Ambos negaram depressão. Refere uma dor crônica em membros inferiores, mas atribui a um ferimento adquirido na guerra. Nega hipertensão e diabetes. Relata ter gota. Faz uso de: Paroxetina 20 mg/dia; Metadona 20 mg 8/8 h; Meloxicam VO 7,5 mg/ dia; Acetaminofeno com codeína (300/60 mg) 2 cp 8/8 h; Alopurinol 300 mg/dia
Seus sinais vitais e exame neurológico estão normais. Exame físico apresentou gonartrite bilateral.

Por não apresentar nenhuma doença severa debilitante e negar depressão (apesar de usar Paroxetina), síndrome demencial continua como principal diagnóstico.

·         Síndrome demencial
Já foi caracterizada no início do texto, mas ainda falta sabermos quais doenças podem causá-la. As principais são Doença de Alzheimer, demência por corpúsculos de Lewy, demência vascular, demência frontotemporal e as demências reversíveis. As mais comuns em nosso meio são a Doença de Alzheimer (DA) e a demência vascular (DV). No entanto, quando pensamos em algum paciente que tenha demência essas NÃO são nossa primeira suspeita. Sempre devemos excluir as causas reversíveis! Dentre elas existem: por hematoma subdural, hipotireoidismo, deficiência de vitamina B 12, infecção e hidrocefalia normobárica (ou de pressão normal).

·         Doença de Alzheimer (DA)
Tipicamente é um paciente que vem acompanhado na consulta e que negue sua doença. É mais comum após os 65 anos, mas existem apresentações em jovens. Possui uma evolução arrastada e sem regressão, que geralmente acomete memória, alteração de humor, mudança de personalidade e abstinência social. Alterações de linguagem são muito comuns e podem acontecer no início da doença e progredir assim como todo o quadro de perda cognitiva. No final da doença o paciente fica completamente dependente, mesmo para as atividades mais básicas do dia a dia.
O diagnóstico definitivo, por enquanto, só é realizado pela biópsia portanto, é melhor nós ficarmos pela clínica mesmo... A maneira mais eficiente de diagnosticar um paciente com DA é seguindo 3 passos: (1) suspeitar de demência; (2) diagnosticar demência; (3) excluir as outras demências reversíveis e enquadrar o paciente nos critérios da NINCDS-ADRDA.
Suspeitar de demência acho que todos já entenderam, né? O diagnóstico de demência é feito, classicamente, pelo Mini exame do estado mental (MEEM). Existem outros exames mas, o mais comumente usado é o MEEM. Se o paciente fizer menos de 24 pontos (total de 30) o diagnóstico sindrômico é confirmado. Os exames usados na prática para descartar as causas reversíveis são: Hemograma, TSH e T4 livre, função hepática e vitamina B 12 sérica. Os critérios da NINCDS-ADRDA para DA são:
(1) ter demência;
(2) ter, pelo menos, déficits em duas áreas de cognição (orientação, atenção, função executiva, memória e linguagem);
(3) sinais e sintomas progressivos;
(4) sem alteração de consciência;
(5) idade entre 40 e 90 anos;
(6) Punção lombar e achados no EEG normais e neuroimagem com atrofia cerebral.
O tratamento envolve ação multidisciplinar e farmacológica. Além do paciente deve haver um suporte psicológico para as famílias e cuidadoras (nem elas escapam!). Devem ser feitas medidas para aumentar a segurança do paciente e tentar mantê-lo em uma rotina ou em atividades em que seu déficit cognitivo não o estresse. Os fármacos usados são da classe dos inibidores da colinesterase (ex: Rivastigmina) ou um antagonista do receptor N-metil-D-aspartato (NMDA), a Memantina.

Como você leu o blog Medicina Nossa de Cada Dia, resolveu seguir os 3 passos para diagnosticar um paciente com DA. A suspeita de demência já havia sido feita e por isso realizou o MEEM. Sr. MSR fez 20 de 30 pontos. Pelos critérios da NINCDS-ADRDA ele apresentava alteração em 3 áreas cognitivas. Para determinar se o quadro é progressivo, foi solicitado que ele retorne em 3 meses com o resultado dos exames solicitados (aquela rotina descrita acima) e orientado a usar a dose mínima dos psicoativos que já fazia uso, não dirigir o carro e se manter em uma rotina.

·         Demência vascular (DV)
O quadro demencial é igual ao do paciente com DA, apenas algumas nuances a distingue.  É uma doença que pode ter uma história de início agudo, e com uma evolução “em degraus” relacionada com um evento vascular (evento vascular -> alteração cognitiva -> se mantém nesse quadro -> piora do quadro -> se mantém -> piora ainda maior do quadro -> se mantém...)
Seu diagnóstico é clínico podendo ter algum auxílio com exame de imagem. É um paciente com demência associado a sinais neurológicos focais (hiperreflexia unilateral, sinal de Babinski, desvio de comissura labial e etc.) e história ou fatores de risco para acidente vasculare.   

Após os 3 meses, pela diminuição da dose dos medicamentos apresentava-se mais animado, apesar de ter havido piora de seu estado cognitivo. Todos os exames solicitados foram normais e a TC mostrou atrofia cerebral.

Tranquilamente podemos afirmar que é um paciente com DA, pois não apresenta nenhum fator de risco para DV, seus exames deram normais e pela última consulta conseguimos confirmar o caráter progressivo do quadro cognitivo. Apesar do caso ter sido resolvido, ainda existe um tipos de alteração cognitiva que gostaria de expor.

·         Declínio cognitivo mínimo (DCM)
É uma condição em que o paciente refere perda de memória, mas sem atrapalhar suas atividades diárias e sem preencher os critérios de demência. As queixas mais comuns são: dificuldade de lembrar o nome das pessoas e resolver problemas complexos. Eu sei que você pensou: “F#%@, eu tenho DCM!!” Não se desespere, converse com seus amigos e familiares e verá que todos nós somos assim e que está tudo normal com você! O diferencial entre nós e o paciente com DCM (eu espero...) é que ao realizar um teste específico para memória, o doente vai apresentar alteração.
O que fazer quando detectarmos esse paciente? Realmente é algo complicado, pois, teoricamente, ele não se enquadra em uma demência e portanto não tem uma terapia direta. Esse paciente deve ser investigado quanto a depressão, ansiedade, insônia e quais fármacos (ou toxinas) que costuma usar, pois são condições comumente associadas com DCM.

REFERÊNCIA: Symptom to Diagnosis an Evidence-Based Guide 2nd Edition 2010

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Até a próxima, galera!

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